A VIOLÊNCIA CONTRA A MULHER NA UNIVERSIDADE E O SILENCIAMENTO

Lorrany Rodrigues do Nascimento


Fomos socializadas a respeitar mais o medo do que nossas necessidades de linguagem e significação, e enquanto esperarmos em silêncio pelo luxo supremo do destemor, o peso desse silêncio nos sufocará.

(LORDE, 2019)


No dia 8 do mês passado uma estudante da Universidade de Brasília (UnB) foi estuprada enquanto se deslocava do Restaurante Universitário (RU) para uma sala de aula no Instituto Central de Ciências (ICC) (MARTINS, 2022). Em 2016, a estudante de Biologia Louise Ribeiro foi vítima de feminicídio em um laboratório dentro da Universidade (LUIZ, 2016). Denúncias de assédio moral e sexual contra um professor da Faculdade de Comunicação (FAC) vieram à tona por meio da campanha  #meuamigosecreto, em 2015 (RODRIGUES, 2015) . Já em 2011, fotos de calouras do curso de Agronomia ajoelhadas e lambendo linguiças com leite condensado durante um trote foram encaminhadas à Secretaria de Políticas para as Mulheres da Presidência da República (G1, 2011).

O crime brutal que ocorreu no início deste mês não foi um ato isolado dentro da UnB. A violência patriarcal é algo recorrente nesta e em outras Universidades do país. Além de ausência de uma política de segurança satisfatória e de infraestrutura adequada (iluminação, por exemplo), o que explica que um ato como esse aconteça dentro de uma instituição que se define como um “[...] organismo indispensável para o desenvolvimento de uma sociedade mais íntegra e democrática [...]” (UnB, 2022)?

Em primeiro lugar, é importante lembrar que a Universidade se fundamenta em uma perspectiva eurocêntrica, classista, racista e patriarcal e que o racionalismo, desde o início da modernidade, teve o papel de legitimar a restrição das mulheres a uma posição de subalternidade e interpor obstáculos ao acesso ao conhecimento. Os indígenas, os negros e as mulheres tiveram seu conhecimento relegado à desimportância pelo racionalismo cartesiano e o racismo e o sexismo asseguraram que fossem vistos como não-humanos (GROSFOGUEL, 2016). 

É o que nos mostra Silvia Federici em sua análise acerca do genocídio e epistemicídio promovido pela Caça às Bruxas. As mulheres que tinham maior conhecimento acerca de ervas medicinais, métodos contraceptivos e abortivos ou que exerciam um papel de liderança nas revoltas populares foram julgadas como bruxas, torturadas, estupradas e mortas nas fogueiras. Foi nesse processo que se moldou um ideal de feminilidade burguesa, que representa as mulheres como débeis, perversas e que deveriam ter a sexualidade controlada, tendo em vista que esta seria perigosa, levando os homens à perda da racionalidade (FEDERICI, 2010).

Em uma perspectiva semelhante, Paola Tabet (2005a, 2005b) mostra como às mulheres é vedado o acesso a determinados conhecimentos, técnicas e instrumentos de trabalho. A autora também evidencia que o controle sexual e reprodutivo tem como fundamento a restrição ao conhecimento e o uso da violência física, psicológica e sexual. Davis (2016), por seu turno, destaca o papel que o estupro teve durante o processo de escravização, servindo como um meio adicional de violência contra as mulheres negras e de humilhação de seus companheiros. Nesse contexto, o estupro era empregado de forma generalizada, sendo as mulheres negras (as quais possuíam um papel ativo na perpetuação do conhecimento por meio de estratégias como as escolas clandestinas) entendidas como passíveis de tal violência sem punição de seus autores por serem propriedade dos homens brancos. Vale destacar que essas mulheres tiveram um papel de destaque na luta pela abolição e que a elas não se estendia o ideal de fragilidade feminina burguês, sendo vistas como passíveis de suportarem mais dor no emprego dos castigos.

Rita Segato (2003) argumenta que as mulheres nunca foram reconhecidas plenamente como cidadãs. Segundo a autora, o estupro ainda não é visto como uma violência contra a mulher, que é entendida como propriedade do homem, mas como uma afronta a  honra deste. A mulher é vista como passível de proteção na medida em que esteja subjugada a um homem. É assim que o estupro aparece, tal qual evidenciado por relatos de condenados por esse crime em entrevistas concedidas a Segato, como uma punição a mulheres que fogem do papel de subordinação. É, também, um ato de enfrentamento a um homem genérico e, ao mesmo tempo, uma busca por reconhecimento da masculinidade, um status que se associa à necessidade de controle e que precisa ser reafirmado constantemente.

A partir das obras de tais autoras, entende-se que a violência que as mulheres sofrem dentro da Universidade é uma forma de punição por não se encaixarem no ideal de domesticidade e debilidade. A Universidade é uma instituição que se estruturou no sexismo e que serve aos interesses das classes dominantes no contexto do Capitalismo Patriarcal. Só muito recentemente, as mulheres passaram a acessar esse ambiente de forma mais generalizada. A violência física, sexual, psicológica e moral a que estamos sujeitas nos nossos deslocamentos, dentro das salas de aula, dos centros acadêmicos e dos banheiros; nos trotes; nas apresentações de trabalhos; nas bancas de seleção e de defesa dos nossos trabalhos; ou ao trazermos para a sala de aula assuntos relevantes como as inúmeras discriminações a que somos sujeitas cotidianamente são estratégias para que não permaneçamos nesse espaço. 

Resistir a essas inúmeras violações demanda uma transformação de caráter estrutural, não restrita ao espaço da Universidade, que implique na reconfiguração de uma sociedade fundamentada no Patriarcado. Essa resistência tem como ponto de partida o rompimento com o silêncio que nos é imposto. Devemos exigir espaços com mais monitoramento, iluminação e com mais pessoas que garantam a nossa segurança. Devemos, entretanto, exigir também que o que produzimos dentro dessa Universidade deixe de ser visto como desimportante.

A violência é fonte de dor e fomos ensinadas que a Universidade não é lugar para expô-la. Tal qual abordado por Nancy K. Bareano na introdução de “Irmã Outsider” de Audre Lorde:

 

A estrutura do patriarcado branco ocidental exige que acreditemos na existência de um conflito inerente entre o que sentimos e o que pensamos - entre a poesia e a teoria. É mais fácil que nos controlem quando uma parte do nosso eu é separada da outra, fragmentada e sem equilíbrio. Contudo, existem outras configurações, outras formas de experimentar o mundo, ainda que seja difícil nomeá-las

 (BAREANO, 2019, p. 12).

 

É necessário, assim, tal qual abordado por Audre Lorde em outro texto do livro acima citado, que não nos limitemos ao silêncio pelo medo de sermos revitimizadas ao expormos as violências a que estamos sujeitas dentro desse espaço (LORDE, 2019). É preciso que as manifestações públicas continuem e, tão necessárias quanto elas, são as pesquisas que evidenciam as violações dos nossos direitos, as discussões em sala de aula e a criação de mais espaços dentro da Universidade direcionados à apuração de casos de violência contra as mulheres. Silenciar a dor é uma forma de nos controlar, já trazer à tona essa forma de conhecimento suscita a mobilização necessária à transformação.

 

REFERÊNCIAS

BAREANO, Nancy K. Introdução. In: LORDE, Audre. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

DAVIS, Ângela. Mulheres, raça e classes. São Paulo: Boitempo, 2016. 

FEDERICI, Silvia. Calibán e la bruja: Mujeres, cuerpo y acumulación originaria. Madri: Traficantes de Sueños, 2010, pp. 219-286.

GUILHERME, Paulo. Secretaria de Políticas para Mulheres pede explicações sobre trote na UnB. G1, 28 de janeiro de 2011. Disponível: https://g1.globo.com/educacao/noticia/2011/01/secretaria-do-governo-investiga-trote-de-calouros-na-unb.html .

LORDE, AUDRE. A transformação do silêncio em linguagem e ação. In:______. Irmã Outsider: ensaios e conferências. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

LUIZ, Gabriel. MP acusa de feminicídio jovem que matou ex em laboratório da UnB. G1, Distrito Federal, 8 de abril de 2016. Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2016/04/mp-acusa-de-feminicidio-jovem-que-matou-ex-em-laboratorio-da-unb.html.

MARTINS, Thays. Estudante de 18 anos é estuprada na UnB, no campus da Asa Norte. Correio Braziliense, Brasília, 9 de julho de 2022. Disponível em: https://www.correiobraziliense.com.br/euestudante/ensino-superior/2022/07/5021155-estudante-de-18-anos-e-estuprada-na-unb-no-campus-da-asa-norte.html.

RODRIGUES, Mateus. UnB apura 'dossiê' sobre professor suspeito de assédio moral e sexual. G1, Distrito Federal, 15 de dezembro de 2015. Disponível em: https://g1.globo.com/distrito-federal/noticia/2015/12/unb-apura-dossie-sobre-professor-suspeito-de-assedio-moral-e-sexual.html.

SEGATO, Rita. Las estructuras elementales de la violencia: ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Buenos Aires: Universidad Nacional de Quilmes, 2003.

TABET, Paola. Las manos, los instrumentos, las armas. El patriarcado al desnudo: tres feministas materialistas. Buenos Aires: Brecha Lésbica, 2005a.

______. Natural Fertility, Forced Reproduction. In: LEONARD, D.; ADKINS, L.. Sex in question: french materialist feminism.  Londres e Bristol: Taylor e Francis e-Library, 2005b.

Universidade de Brasília ( UnB). A UnB. Disponível em: https://www.unb.br/institucional/a-unb.

  

Lélia Gonzalez e a categoria da Amefricanidade

No dia 25 de julho foi comemorado o Dia da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha. A data surgiu a partir de uma conferência realizada pela ONU, em 1992, na República Dominicana. O objetivo foi discutir a questão da violação de direitos dessas mulheres (TRISTAN, 2020). Neste contexto, nós do GENPOSS gostaríamos de lembrar Lélia Gonzalez, intelectual negra brasileira que questionou a ideia de democracia racial, evidenciou o eurocentrismo de nossas produções acadêmicas, colocou em primeiro plano a discriminação sofrida pelas mulheres negra e pobres e elaborou o conceito de Amefricanidade.
Lélia Gonzalez nasceu em 1935, em Minas Gerais, mas migrou com a família ainda na infância, em 1942, para o Rio de Janeiro. Nasceu em uma família numerosa e de origem pobre (seu pai era ferroviário e sua mãe dona de casa), mas teve a oportunidade de estudar devido ao fato de ter sido uma das filhas mais novas. Cursou História, Geografia e Filosofia onde hoje é a Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ), foi professora da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC), atuou no Movimento Negro, no Partido dos Trabalhadores (PT) e posteriormente, no Partido Democrático Trabalhista (PDT) (BARRETO, 2018; GONZALEZ, 2018).
O conceito de Amefricanidade foi elaborado pela autora na década de 1980, quando, para entender a questão do racismo, a autora passou a tomar como referência a contra colonialidade e a psicanálise. A Amefricanidade é uma categoria que explicita que o centro da América não são as culturas estadunidense e europeia. A autora evidencia as influências majoritárias das culturas originárias da África e das culturas indígenas na linguagem, nas religiões, nas festas, dentre outros fatores. Lélia Gonzalez propõe o reconhecimento dessa influência por meio de um reordenamento afrocentrado, que vai de encontro ao processo de embranquecimento, processo por meio do qual o racismo por denegação se expressa (GONZALEZ, 1988).
Assim, ressaltamos que a luta contra o racismo parte da desmistificação da ideia de democracia racial, a qual tem por objetivo evitar o reconhecimento e a reparação que lhe é inerente. Nesse sentido, em meio a um contexto em que as mulheres negras continuam a ser alvo de maior violência, gostaríamos de ressaltar a importância de Lélia Gonzalez, autora que as colocou em primeiro plano e que mostrou como, longe da resignação e subalternidade, essas mulheres tiveram um papel ativo na luta contra o processo de escravização e de disseminação da cultura afrocentrada (como pode ser visto na figura da mãe preta).

Referências
GONZALEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, Nº. 92/93 (jan./jun.). 1988b, p. 69-82.

______. Lélia Gonzalez: um depoimento.  In: GONZALEZ, L.. Primavera para rosas negras. [S. L.]: Diáspora Africana: 2018.

BARRETO, Raquel. Lélia Gonzalez: uma intérprete do Brasil. In: GONZALEZ, L.. Primavera para rosas negras. [S. L.]: Diáspora Africana: 2018.

TRISTAN, Jennifer. Dia da mulher negra latino-americana e caribenha. 25J: mulheres negras têm história! Esquerda Diário, São Paulo, 25 de julho de 2020. Disponível em: https://www.esquerdadiario.com.br/25J-mulheres-negras-tem-historia?amp=1&gclid=Cj0KCQjw0JiXBhCFARIsAOSAKqCyZRlLDPn3C5DbXTK2piNkGCkUmP1i8gUmHjiHea3bvPxMzW2ypAEaAqQpEALw_wcB. Acesso em: 23 de julho de 2022.